quarta-feira, 13 de junho de 2012

ATO V - Poemas - Jessica Freudenthal


eric blog
ANO I
N.5
São Paulo
2012


Se não sangra, a minha escrita não existe. Se não rasga o corpo, tampouco existe.
Tatiana Salem Levy, “A chave de casa”


ATO V

Poemas escolhidos de Jessica Freudenthal

Poemas extraídos de Hardware
Plural Editores: La Paz, 2009.
2° edição revista e ampliada.

Tradução de Eric Dantas. São Paulo, 2011.


1. Subtração poética
Para Raúl Zurita

escrevo com medo
desde o medo
de pôr a palavra
a palavra incorreta

poetiza! poetisa!

poetita de merda

Medo
morro
morro
de medo
de não saber
de onde venho

da Bolívia
dizem que venho

bolivianita

que bonita palavrita

vazia

escrevo com medo

vazia

escrevo com tédio

não sou de parte alguma

Chukiago Marka não existe

somente a pedra
o silêncio

as caveiras

ecoando
             ñatita ñatita
recitando

vem a morte
ecoando

Escrevo com medo

a palavra se corta
a palavra se
Corta
a palavra
se corta
a
palavra se
corta

Chukiago Marka não existe
                                                 é apenas um nome
escrito com medo

escrevo como posso

não penso
nos criticantes nem nos amantes
tampouco nas consoantes
somente nas assonantes

Medo

Chukiago Marka não existe

não há alfabeto
para dizer

qual será a letra milenar para escrever?

Erro

poetita de merda.


2. Xis

Este poema              se                 desfaz
se despedaça                                nos vincos do silêncio
lenta
           mente
           tentando sujeitar-se          ao verbo
           a um adjetivo                    que não existe.

Este poema se rompe:
                                                     Acaba de parir outro poema.
se esvazia da forma
e no fundo está o pronome.

                                                     Meu coração morre
                                                     de rir
                                                     quando me vê chorar.
Este não é um poema.
Isto não é um poema.

É um fragmento incompleto do abismo,
um simulacro de                                                   fuga
pura ginástica cerebral,
um pálido pedaço de papel,
Todos os pontos suspensos...


3.  Os mortos

“Os mortos estão nesta terra
cujo mistério evapora e os abriga”.
Paul Valéry

Silenciados, esfarrapados,
ausentes e com cicatrizes,
debaixo das sombras se escondem como aranhas,
irrompem escuridões espessas e rasgadas.

Se ferram entre arames,
entre bálsamos traiçoeiros
a terra que se contrai.

Nós não podemos nada 

Dizer nada
                                                               Tocar nada 
                     Ouvir nada                        Morrer nada
Viver nada

Apenas os silenciados e esfarrapados,
os que se quebram e agonizam
podem arder como velas.

Nós apenas somos feitos de abismos:
O tempo nos despreza.


4. Poeira

Atravessar a memória,
as palavras suspensas
    de repente
nas esquinas.

Pensar,
ficar quieto
e avistar o silêncio
pelo olho do mundo.

Atravessar o esquecimento
trazendo nas costas a memória,
os remendos do tempo
e o alento inacabado
da luz.

Dar um passo
para o abismo.

Cair
irremediavelmente
dentro
de si mesmo.


5. Mitos

O mito
prato fundo
circular

A mesa da origem
ordenada
posta

na cabeceira o homem
a mulher à sua esquerda
e o sal
próximo do fruto
testemunhando o incômodo
do porta-guardanapos e seus entalhes

Servidos
os olhos de Tirésias,
o pescoço de Jocasta,
a boca de Antígona,
em salmoura

Os pés de Édipo
vem

O azeite

impregnado na linguagem
sobre a medida voraz do dia
que vê o início
de uma trégua
entre os pratos quebrados.



Posfácio
A ginástica cerebral de Jessica Freudenthal
Juan Carlos Ramiro Quiroga

Hardware (La Paz, 2004), de Jessica Freudenthal Ovando é a evidência indiscutível do fracasso da decisão do jurado na eleição dos ganhadores das cinco versões do Prêmio Nacional de Poesia “Yolanda Bedregal”, com a exceção de Antonio Terán Cabero e Jorge Campero.

Em cada anúncio dos ganhadores desse prêmio nacional as menções são mais alentadoras e sugestivas do que os próprios premiados. Isso ficou claro a partir do momento em que a Plural Editores, a engrenagem principal de “Yolanda Bedregal”, começou a divulgar os resultados em sua linha de difusão e promoção.

Efetivamente, Hardware é um livro de poesia excepcional pela beleza lacerante de suas ironias e a despojada polifonia de leituras (Tristan Tzara, Sylvia Plath, Roque Dalton, Paul Valéry, Humberto Quino Márquez, Pope, Charly García, Agustín Bartra, Yamilé Paz Paredes) que vem a perfilar mais que apoiar a consciência fatalista da autora.

Tal como o crítico e semiólogo francês Roland Barthes, Jessica Freudenthal realiza uma leitura personalíssima das mitologias contemporâneas (o eterno feminino, o trabalho intelectual, o doméstico ou familiar), até deslocá-las de seus significados tradicionais por outros que são talvez mais reais ou atuais. A partir desse “abismo” lança seus dardos.

Não há em Hardware nem um pouco da complacência, da contemplação e da inocência feminina (características da mulher submissa e obediente), mas ao contrário: a descortesia, a intimidação e o sarcasmo de Lilith, a primeira mulher criada por Deus.

A partir desse ponto de vista, o ambiente familiar e doméstico não é o que parece ser, senão o que está a ponto de revelar o fio da linguagem de Jessica Freudenthal. Sua palavra é uma espada que fere de ironia os valores mais profundos da cotidianidade.

Indo mais além, os poemas de Hardware rompem ou quebram a face monótona da realidade comum, quer dizer, se estilhaçam contra as unhas e as boquinhas pintadas da hipocrisia familiar, doméstica e urbana. Nunca mais argumenta Freudenthal ao sonho americano made in Walt Disney.

Ao ser uma crítica do ambiente familiar e doméstico, Hardware é também não pode deixar de ser uma crítica da linguagem que o assinala, porque a ironia funciona em ambos os lados tanto na realidade como na imaginação, porque transforma ambos significados.

Por isso o livro de Freudenthal é, acertadamente dito pela autora, “um simulacro de/pura ginástica cerebral”. Nada mais pontual que esta observação ressaltada no início da obra poética a fim de estabelecer o jogo.

Não obstante, o sarcasmo utilizado em Hardware produz, no ápice de contato com o leitor, um curto-circuito. O poema deixa de ser o poema que vem orientar a existência humana para converte-se em uma simples vantagem: um “poema curita” como diz Freudenthal.

A poesia de Freudenthal vai na mesma direção da poesia de Humberto Quino Márquez: irreverente com as coisas familiares do mundo e também irreverente consigo mesma com a mesma paixão e agudeza da argentina Laura Yasán ou a alegria da chilena Malú Urriola.