segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

ATO I - Poemas - Roberto Bolaño

eric blog
ANO I
N.1
São Paulo
2012


Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
Carlos Drummond de Andrade, O lutador


Todo tradutor é um leitor infiel.
Provérbio árabe


ATO I

Poemas escolhidos
Roberto Bolaño

Poemas extraídos de Los perros románticos
Zarautz: Editora Fundación Social y Cultural Kutxa, 1995.

Tradução de Eric Dantas. São Paulo, 2009.


1. O burro

Às vezes sonho que Mario Santiago
Vem me buscar com sua moto negra.
E deixamos a cidade para trás e à medida
Que as luzes vão desaparecendo
Mario Santiago me diz que se trata
De uma moto roubada, a última moto
Roubada para viajar pelas pobres terras
Do Norte, em direção ao Texas,
Perseguindo um sonho inominável,
Inclassificável, o sonho de nossa juventude,
Quer dizer, o sonho mais valente de todos
Nossos sonhos. E de tal maneira
Como negar-me a montar a veloz moto negra
Do Norte e sair cortando por aqueles caminhos
Que antigamente percorreram os santos do México,
Os poetas mendicantes do México,
Os sanguessugas taciturnos de Tepito
Ou Colonia Guerrero, todos no mesmo caminho,
Onde se confundem e mesclam os tempos:
Verbais e físicos, o ontem e a afasia.

E às vezes sonho que Mario Santiago
Vem me buscar, ou é um poeta sem rosto,
Uma cabeça sem olhos, nem boca, nem nariz,
Apenas pele e desejo, e eu sem perguntar nada
Subo na moto e partimos
Pelos caminhos do Norte, a cabeça e eu,
Estranhos tripulantes embarcados em uma rota
Miserável, caminhos apagados pela poeira e pela chuva,
Terra de moscas e lagartixas, matagais secos
E tempestade de areia, o único teatro concebível
Para nossa poesia.

E às vezes sonho que o caminho
Que nossa moto ou nosso desejo percorre
Não começa em meu sonho senão no sonho
De outros: os inocentes, os bem-aventurados,
Os mansos, os que para nossa infelicidade
Já não estão aqui. E assim, Mario Santiago e eu
Saímos da Cidade do México que é a prolongação
De tantos sonhos, a materialização de tantos
Pesadelos, e percorremos os estados
Sempre para o Norte, sempre pelo caminho
Dos coiotes, e nossa moto então
É da cor da noite. Nossa moto
É um burro negro que viaja sem pressa
Pelas terras da Curiosidade. Um burro negro
Que se desloca pela humanidade e pela geometria
Dessas pobres paisagens desoladas.
E o riso de Mario ou da cabeça
Saúda os fantasmas de nossa juventude,
O sonho inominável e inútil
Da valentia.

E às vezes acredito que vejo uma moto negra
Como um burro negro afastando-se pelos caminhos
De terra de Zacatecas e Coahuila, nos limites
Do sonho, e sem conseguir compreender
Seu sentido, seu significado último,
Compreendo não obstante sua música:
Uma alegre canção de despedida.

E talvez são os gestos de valor os que
Nos dizem adeus, sem ressentimento nem amargura,
Em paz com sua gratuidade absoluta e com nós mesmos.
São os pequenos desafios inúteis ou que
Os anos e o costume consentiram
Que acreditássemos inúteis os que nos saúdam,
Os que nos fazem sinais enigmáticos com as mãos,
No meio da noite, em um dos lados da estrada,
Como nossos filhos queridos e abandonados,
Criados sozinhos nestes desertos calcários,
Como o brilho que um dia nos atravessou
E que havíamos esquecido.

E às vezes sonho que Mario chega
Com sua moto negra no meio do pesadelo
E partimos rumo ao Norte,
Rumo aos povoados fantasmas onde habitam
As lagartixas e as moscas.
E enquanto o sonho me leva
De um continente a outro
Através de um banho de estrelas frias e indolores,
Vejo a moto negra, como um burro de outro planeta,
Percorrer as terras de Coahuila.
Um burro de outro planeta
Que é o desejo indecente de nossa ignorância,
Mas que também é nossa esperança
E nosso valor.

Um valor inominável e inútil, verdadeiro,
Mas redescoberto nas margens
Do sonho mais distante,
Nas alamedas do sonho final,
No caminho confuso e magnético
Dos burros e dos poetas.


2. Os anos

Ainda posso vê-lo, seu rosto marcado a fogo
no horizonte
Um rapaz belo e valente
Um poeta latino-americano
Um perdedor nada preocupado com dinheiro
Um filho da classe média
Um leitor de Rimbaud e de Oquendo de Amat
Um leitor de Cardenal e de Nicanor Parra
Um leitor de Enrique Lihn
Um tipo que se apaixona loucamente
e que depois de dois anos está sozinho
mas pensa que isso não pode ser
que é impossível não acabar voltando
outra vez com ela
Um vagabundo
Um passaporte dobrado e amassado e um sonho
que atravessa postos fronteiriços
afundado na lama de seu próprio pesadelo
Um trabalhador de temporada
Um santo selvagem
Um poeta latino-americano distante dos poetas
latino-americanos
Um tipo que transa e ama e vive aventuras agradáveis
e desagradáveis cada vez mais distantes
do ponto de partida
Um corpo chicoteado pelo vento
Um conto ou uma história que quase todos esqueceram
Um tipo obstinado, provavelmente de sangue indígena,
mestiço e galego
Uma estátua que às vezes sonha em reencontrar
o amor em uma hora inesperada e terrível
Um leitor de poesia
Um estrangeiro na Europa
Um homem que perde o cabelo e os dentes
mas não o valor
Como se o valor valesse alguma coisa
Como se o valor fosse devolver
aqueles distantes dias de México
a juventude perdida e o amor
(Bom, digamos que aceito perder o México e a juventude
mas jamais o amor)
Um tipo com uma estranha predisposição
a sobreviver
Um poeta latino-americano que ao anoitecer
se fecha em seu jargão e sonha
Um sonho maravilhoso
que atravessa países e anos
Um sonho maravilhoso
que atravessa doenças e ausências.


3. Biblioteca de Poe

No fundo de um estranho estábulo
Livros ou pedaços de carne
Nervos enganchados de um esqueleto
Ou papel impresso
Um vaso ou a porta
Dos pesadelos.


4. Um final feliz

Que tempos aqueles, quando vivia com meu pai e não assistia à televisão. As
tardes eram intermináveis na Colonia Tepeyac, perto da Villa,
exatamente a duas quadras da Calzada da Villa. Tardes dedicadas a
traduzir os poetas franceses da Geração Elétrica, sentado na
cama, ao lado da janela do pátio de cimento. As pombas que meu pai
comia aos domingos, arrulhavam, ou melhor, às quintas e às sextas, e
aprofundavam a escavação. As pombas no pombal de cimento! E sem o
chiado da televisão!

Um final feliz
No México
Na casa do meu pai
Ou na casa da minha mãe
Um minuto de solidão
O rosto apoiado
No batente da janela
E os bondes
Nos arredores
De Bucareli
Com moças tristes
Que se despedem
Do outro lado da janela
E o ruído dos automóveis
Às 3 horas da madrugada
E os timbres
E as paisagens da varanda
No México
Com 21 anos
E a alma fria
Gelada.


5. Os detetives

Sonhei com detetives perdidos na cidade sombria
Ouvi seus gemidos, suas náuseas, a delicadeza
De suas fugas
Sonhei com dois pintores que ainda não tinham
40 anos quando Colombo
Descobriu a América
(Um clássico, atemporal, o outro
Moderno sempre
Como a merda)
Sonhei com uma pista iluminada
O caminho das serpentes
Percorrido uma e outra vez
Por detetives
Absolutamente desesperados
Sonhei com um caso difícil
Vi os corredores cheios de policiais
Vi os questionários que ninguém resolve
Os arquivos infames
E logo vi o detetive
Voltar ao local do crime
Sozinho e tranquilo
Como nos piores pesadelos
Vi quando ele sentou no chão para fumar
Em um quarto com restos de sangue
Enquanto os ponteiros do relógio
Viajavam encolhidos pela noite
Interminável.


6. Os detetives perdidos

Os detetives perdidos na cidade sombria
Ouvi seus gemidos
Ouvi seus passos no Teatro da Juventude
Uma voz que avança como uma flecha
Sombra de cafés e parques
Frequentados na adolescência
Os detetives que observam
Suas mãos abertas
O destino manchado com o próprio sangue
E você não pode nem sequer lembrar
Onde estava a ferida
Os rostos que uma vez amou
A mulher que te salvou a vida.


7. Os detetives frios

Sonhei com detetives frios, detetives latino-americanos
que queriam manter os olhos abertos
no meio do sonho.
Sonhei com crimes horríveis e com tipos cuidadosos
que procuravam não pisar nas poças de sangue
e ao mesmo tempo compreender com uma só olhada
o cenário do crime.
Sonhei com detetives perdidos
no espelho convexo dos Arnolfini:
nossa época, nossas esperanças,
nossos modelos de Espanto.


8. Lupe

Trabalhava em Guerrero, a poucas ruas da casa de Julián
e tinha 17 anos e havia perdido um filho.
A lembrança a fazia chorar naquele quarto do hotel Trébol,
espaçoso e escuro, com banheiro com bidê, o lugar ideal
para viver durante alguns anos. O lugar ideal para escrever
um livro de memórias apócrifas ou uma antologia
de poemas de terror. Lupe
era magra e tinha as pernas compridas e manchadas
como os leopardos.
A primeira vez nem sequer teve uma ereção:
tampouco esperava ter uma ereção. Lupe falou de sua vida
e do que para ela era a felicidade.
Depois de uma semana nos reencontramos. Encontrei-a
numa esquina junto com outras putinhas adolescentes,
apoiada no para-lama de um velho Cadillac.
Acredito que nos alegramos ao nos reencontrar. E a partir de então
Lupe começou a me contar coisas de sua vida, às vezes chorando,
às vezes apreensiva, quase sempre nua na cama,
olhando o céu raso ao alcance da mão.
Seu filhinho nasceu doente e Lupe prometeu à Virgem
que deixaria o ofício se o bebê se curasse.
Manteve a promessa por um ou dois meses, mas logo voltou ao trabalho.
Pouco depois seu filhinho morreu e Lupe dizia que a culpa
era sua por não cumprir com a Virgem.
A Virgem levou o anjinho por uma promessa não cumprida.
Eu não sabia o que dizer.
Gostava de criança, asseguro,
mas ainda faltavam muitos anos para que eu soubesse
o que era ter um filho.
Assim que me calava, pensava na estranheza
que resultava o silêncio daquele hotel.
Ou tinha as paredes muito sólidas e éramos os únicos hóspedes
ou os demais não abriam a boca nem para gemer.
Era tão fácil lidar com Lupe e sentir-se homem
e sentir-se infeliz. Era fácil acompanhar
seu ritmo e era fácil ouvi-la dizer
sobre os últimos filmes de terror que assistira
no cine Bucareli.
Suas pernas de leopardo se esfregando em minha cintura
e esfregava sua cabeça em meu peito buscando meus mamilos
ou a batida do meu coração.
É isso o que quero chupar, me disse uma noite.
O quê, Lupe? O coração.


9. A francesa

Uma mulher inteligente
Uma mulher linda
Conhecia todas as variantes, todas as possibilidades
Leitora dos aforismos de Duchamp e dos relatos de Defoe
Em geral com um autocontrole invejável
Salvo quando estava deprimida e se embebedava
Algo que podia durar dois ou três dias
Algumas rodadas de Bordeaux e Valium
Que a deixava na pele de uma galinha
Então começava a contar as histórias que aconteceram
Entre os 15 e os 18 anos
Um filme de sexo e de terror
Corpos nus e negócios nos limites da lei
Uma atriz predestinada e ao mesmo tempo uma menina com estranhos
traços de avareza
Que conheci quando acabava de completar 25 anos
Em uma época tranquila
Suponho que tinha medo da velhice e da morte
A velhice para ela eram os trinta anos
A Guerra dos Trinta Anos
Os trinta anos de Cristo quando começou a pregar
Uma idade como qualquer outra, dizia, enquanto ceávamos
À luz de velas
Contemplando o correr do rio mais literário do planeta
Mas para nós o prestígio estava em outra parte
Em esferas possuídas pela lentidão, nos gestos estranhamente
lentos da desordem furiosa
Nas camas tristes
Na multiplicação geométrica das vitrines vazias
E no abismo da realidade
Nosso luxo
Nosso absoluto
Nosso Voltaire
Nossa filosofia de dormitório e toucador
Como dizia, uma garota inteligente
Com essa rara virtude serena
(Rara para nós latino-americanos)
Que é tão comum em seu país
Onde até os assassinos têm um manual de economia
E ela não ia ter menos que isso
Um manual de economia e uma foto de Tristán Cabral
A nostalgia do não-vivido
Enquanto aquele prestigioso rio arrastava um Sol moribundo
E sobre suas bochechas corriam lágrimas aparentemente gratuitas
Não quero morrer, sussurrava enquanto corria
Na perspicaz escuridão do dormitório
E eu não sabia o que dizer
Na verdade não sabia o que dizer
Salvo acariciá-la e ampará-la enquanto se movia
Pra cima e pra baixo como a vida
Pra cima e pra baixo como as poetisas da França
Inocentes e castigadas
Até que voltava ao Planeta Terra
E de seus lábios brotavam
Passagens de sua adolescência que de improviso enchiam nossa casa
Com imagens que choravam nas escadas rolantes do metrô
Com imagens que faziam sexo com dois tipos de uma vez enquanto
lá fora caía a chuva
Sobre os sacos de lixo e sobre as pistolas abandonadas nos
sacos de lixo
A chuva que tudo purificava
Menos a memória e a razão
Vestidos, jaquetas de couro, botas italianas, lingerie para deixar louco
Para deixá-la louca
Apareciam e desapareciam em nossa casa iluminada e minúscula
E traços rápidos de outras aventuras menos íntimas
Brilhavam como vaga-lumes em seus olhos feridos
Um amor que não ia durar muito
Mas que no final se tornaria inesquecível
Disse isso
Sentada ao lado da janela
Seu rosto suspenso no tempo
Seus lábios: os lábios de uma estátua
Um amor inesquecível
Sob a chuva
Sob esse céu eriçado de antenas onde conviviam
As decorações do Século XVII
Com a sujeira de pombos do Século XX
E no meio de tudo
Toda a eterna capacidade de provocar dor
Inabalável através dos anos
Inabalável através dos amores
Inesquecíveis
Disse isso, sim
Um amor inesquecível
E breve
Como um furacão?
Não, um amor breve como o suspiro de uma cabeça guilhotinada
A cabeça de um rei ou um conde bretão
Breve como a beleza
A beleza absoluta
A que contém toda a grandeza e a miséria do mundo
E que apenas é visível para quem ama.


10. Os cães românticos

Naquele tempo eu tinha 20 anos
e estava louco.
Havia perdido um país
mas havia conquistado um sonho.
E se tinha esse sonho
tudo o mais não importava.
Nem trabalhar, nem rezar,
nem estudar de madrugada
com os cães românticos.
E o sonho vivia no vazio de meu espírito.
Uma casa de madeira,
nas sombras,
em um dos pulmões do trópico.
E às vezes olhava dentro de mim
e observava o sonho: estátua eternizada
em pensamentos líquidos,
um verme branco retorcendo-se
no amor.
Um amor indecente.
Um sonho dentro de outro sonho.
E o pesadelo me dizia: crescerás.
Deixarás para trás as imagens da dor e do labirinto
e esquecerás.
Mas naquele tempo crescer era um crime.
Estou aqui, disse, com os cães românticos
e aqui vou ficar.


11. O último canto de amor de Pedro J. Lastarria, apelidado O chorito

Sul-americano em terra de godos,
Este é meu canto de despedida
Agora que os hospitais valem mais que
Os cafés da manhã e as horas do chá
Com uma insistência que não posso
Senão remeter a morte.
Acabaram-se os crepúsculos
Longamente estudados, acabaram-se
Os jogos graciosos que não levam
A nada. Sul-americano
Em terra mais hostil
Que hospitaleira, me preparo
Para entrar no longo
Corredor enigmático
Onde dizem que florescem
As oportunidades perdidas.
Minha vida foi uma sucessão
De oportunidades perdidas,
Leitor de Catulo em latim
Apenas tive coragem para pronunciar
Sine qua non ou ad hoc
Na hora mais amarga
De minha vida. Sul-americano
Em hospitais de godos, o que fazer
Senão lembrar as coisas amáveis
Que uma vez aconteceram comigo?
Viagens inocentes, a elegância
De pais e avós, a generosidade
De minha juventude perdida e com ela
A juventude perdida de tantos
Compatriotas
São agora o alívio de minha dor,
São agora a piada sem malícia
Desencadeada nestas solidões
Que os godos não entendem
Ou que entendem de outra maneira.
Também fui elegante e generoso:
Soube apreciar as tempestades,
Os gemidos de amor nas cabanas
E o pranto das viúvas,
Mas a experiência é uma farsa.
No hospital apenas me acompanham
Minha imaturidade premeditada
E os esplendores vistos em outro planeta
Ou em outra vida.
A cavalgada dos monstros
Onde O chorito
Tem papel destacado.
Sul-americano em terra de
Ninguém, me preparo
Para entrar no lago
Imóvel, como meus olhos
Onde se refletem as aventuras
De Pedro Javier Lastarria
Desde o raio incidente
Até o ângulo de incidência,
Desde o seno do ângulo
De refração
Até a constante chamada
Índice de refração.
Em economia: as más coisas
Convertidas em boas,
Em aparições gloriosas
As verdadeiras intromissões,
A memória do fracasso
Convertida em memória
Do valor. Um sonho,
Talvez, mas
Um sonho que tem triunfado
Por suas próprias forças.
Que ninguém siga meu exemplo
Mas que saibam
Que são os músculos de Lastarria
Os que abrem este caminho.
São o córtex de Lastarria,
O ranger de dentes
De Lastarria, os que iluminam
Esta noite negra da alma,
Reduzida, para meu prazer
E reflexão, a este lugar
De habitação em sombras,
Como pedra febril
Como deserto detido
Em minha palavra.
Sul-americano em terra
De sombras,
Eu que sempre fui
Um cavaleiro,
Me preparo para assistir
A minha própria volta de despedida.


12. Eu voltei a ver meu pai
Para León Bolaño

A história começa com a chegada do sexto doente,
um tipo de mais de sessenta anos, solitário, de enormes costeletas,
com um rádio portátil e um ou dois romances como aqueles
que escrevia Lafuente Estefanía.
Os cinco que já estávamos no quarto éramos amigos,
ou melhor, fazíamos brincadeiras e conhecíamos
os sintomas verdadeiros da morte,
ainda que agora já não estou tão certo disso.
O sexto, meu pai, chegou silenciosamente
e durante todo o tempo que esteve em nosso quarto
quase não falou com ninguém.
No entanto uma noite, quando um dos doentes estava morrendo
(Rafael, o da cama 4)
foi meu pai que se levantou e chamou as enfermeiras.
Nós estávamos paralisados de medo.
E meu pai obrigou as enfermeiras a vir salvar o doente
da cama 4
e logo voltou a dormir
sem dar mais nenhuma importância.
Depois, não sei por quê, o mudaram de quarto.
Rafael mandaram morrer em seu quarto e os outros dois
deram alta.
E hoje voltei a ver meu pai.
Como eu, permanece no hospital.
Lê seu romance de caubói e manca da perna esquerda.
Seu rosto está terrivelmente enrugado.
Ainda o acompanha o rádio portátil vermelho.
Tosse um pouco mais do que antes e não dá muita importância às coisas.
Hoje estamos juntos na salinha, ele com seu romance
e eu com um livro de William Blake.
Lá fora anoitecia lentamente e os carros fluíam como pesadelos.
Eu pensava e pensava em meu pai, uma e outra vez,
até que ele se levantou, disse algo
com sua voz paciente e firme
que não entendi
e acendeu a luz.
Isso foi tudo. Acendeu a luz e voltou à leitura.
Pradarias intermináveis e caubóis de corações fiéis.
Lá fora, sobre o Monte Carmelo, está a Lua cheia.


13. Minha vida nos tubos de sobrevivência

Como era pequenino e pálido e de feições agradáveis
E como era esperto e não estava disposto a ser torturado
Em um campo de trabalho forçado ou em uma cela clandestina
Me colocaram no interior deste disco voador
E me disseram: “voa e encontra teu destino”, mas que
Destino encontraria?, a maldita nave parecia
O holandês errante pelos céus do mundo, como se
Quisesse fugir de minha deficiência, de meu singular
Esqueleto: uma cusparada na cara da Religião,
Uma machadada suave nas costas da Felicidade,
Sustento da Moral e da Ética, a fuga para
Além dos meus irmãos carrascos e dos meus irmãos desconhecidos.
Todos finalmente humanos e curiosos, todos órfãos e
Jogadores cegos à beira do abismo. Mas tudo isso
No disco voador não podia senão me ser indiferente.
O distante. O secundário. A maior virtude de minha espécie traidora
É o valor, talvez a única realidade, palpável como as lágrimas
E as despedidas. E o valor era algo que eu pedia enclausurado
No disco, assombrando os lavradores e os bêbados
Arrancados nas acéquias. Valor, eu dizia, enquanto a maldita nave
Trilhava por favelas e parques que para um passante
Seriam enormes, mas que para mim eram apenas tatuagens sem sentido,
Palavras magnéticas e indecifráveis, apenas um gesto
Insinuado sob o manto de lontras do mundo.
É que havia me convertido em Stefan Zweig e via avançar
O meu lado suicida? Respeito isto, a frieza da nave
Era indiscutível, mas às vezes sonhava
Com um país caliente, uma varanda e um amor fiel e desesperado.
As lágrimas que logo derramava permaneciam na superfície
Do disco durante dias, testemunho não de minha dor, senão de
Um tipo de poesia exaltada e que cada vez mais minúscula
Aperta meu peito, minhas têmporas e meus quadris. Uma varanda
Um país caliente e um amor de grandes olhos fiéis
Avançando lentamente através do sonho, enquanto a nave
Deixava rastros de fogo na ignorância dos meus irmãos
E em sua inocência. E uma esfera de luz éramos o disco voador e eu
Nos olhos dos pobres camponeses, uma imagem perecível
Que não diria jamais o suficiente sobre meu desejo
Nem do mistério que era o princípio e o fim
Daquele objeto incompreensível. Assim até o
Fim dos meus dias, submetido ao arbítrio dos ventos
Sonhando às vezes que o disco voador se lançava na cordilheira
Da América e meu corpo quase sem pecado surgia
Para oferecer aos olhos de velhos montanheses e historiadores:
Um ovo em um ninho de ferros retorcidos. Sonhando
Que o disco voador e eu havíamos terminado a dança peripatética,
Nossa pobre crítica da Realidade, em uma colisão indolor
E anônima em algum dos desertos do mundo. Morte
Que não me trouxe descanso, pois depois de corromper meu corpo
Eu ainda continuava sonhando.


14. Os crepúsculos de Barcelona

O que dizer dos crepúsculos nebulosos de Barcelona. Lembra
Do quadro de Rusiñol Erik Satie em seu estúdio? Assim
São os crepúsculos magnéticos de Barcelona, como os olhos e a
Cabeleira de Satie, como as mãos de Satie e como a simpatia
De Rusiñol. Crepúsculos habitados por silhuetas soberanas, encantamento
Do Sol e do mar sobre essas habitações suspensas ou subterrâneas
Construídas para o amor. A cidade de Sara Gilbert e de Lola Paniagua,
A cidade das esteiras e das confidências absolutamente gratuitas.
A cidade das genuflexões e dos cordéis.


15. Uma leitura de Howard Frankl

Até o melhor deles estava bêbado, mas vi
que a dupla de policiais atravessava
a vitrine da papelaria e logo
a do restaurante e a do armazém
e depois as vitrines de outro
restaurante e de uma tenda de roupa
e da relojoaria até desaparecer
no horizonte completamente azul
como tragados pelo oceano, mas
qual oceano? qual horizonte?


16. O pesadelo

O pesadelo começa por ali, nesse ponto.
Mais além, acima e abaixo, tudo é parte do
pesadelo. Não põe tua mão nesse vaso. Não
põe tua mão nesse vaso do inferno. Ali
começa o pesadelo e tudo quanto desde ali
faça crescerá sobre tuas costas como uma corcunda.
Não se aproxime, não ronde esse ponto equívoco.
Ainda que veja florescer os lábios do teu verdadeiro
amor, ainda que veja florescer algumas pálpebras que
quis esquecer ou lembrar. Não se aproxime.
Não dê voltas ao redor desse equívoco. Não
mova os dedos. Acredite em mim. Ali somente cresce
o pesadelo.


17. Praça da estação

Sob o céu cinzento mas nada é permanente
cercada ou protegida por alerces nus
a praça se insere na realidade.
Da bomba coberta de limo apenas sai
um jato dágua e um arco de ferro
no outro extremo faz um gesto
vagamente escultural, o suporte perdido
de algo que já não veremos. Nem a chuva
é necessária nem as sombras femininas
da imaginação. A praça se recompõe ao distanciar-se,
sua quietude é mérito do viajante. Aqui
no deserto restam as linhas, apenas
os esboços de sua clara disposição agônica.


18. Palingenesia

Estava conversando com Archibald MacLeish no bar Los Marinos
De Barceloneta quando ela apareceu, uma estátua de gesso
Caminhando penosamente sobre os paralelepípedos. Meu interlocutor
Também viu tudo e mandou um rapaz ir buscá-la. Durante os primeiros
Minutos ela não disse uma palavra. MacLeish pediu consommé e petisco
De mariscos, pão de payés com tomate e azeite, e cerveja San Miguel.
Eu me conformei com um chá de camomila e fatias de pão
Integral. Devo me cuidar, disse. Então ela decidiu falar:
Os bárbaros avançam, sussurrou melodiosamente, uma massa disforme,
Grávida de uivos e promessas, uma longa noite fulgurante
Para iluminar o matrimônio de músculos e gordura. Logo
Sua voz se apagou e ela dedicou-se a comer as viandas. Uma mulher
Faminta e charmosa, disse MacLeish, uma tentação irresistível
Para dois poetas, se bem que de diferentes línguas do mesmo indomável
Novo Mundo. Concordei com ele sem entender todas suas palavras.
Dormi. Quando acordei MacLeish já tinha ido embora. A estátua
Estava ali, na rua, seus restos espalhados entre a calçada
Irregular e os velhos paralelepípedos. O céu, antes azul, tornou-se
Negro como um rancor insuperável.Vai chover, disse um menino
Descalço, tremendo sem motivo aparente. Nos fitamos um instante:
Com o dedo indicou os fragmentos de gesso pelo chão. Neve, disse.
Não trema, respondi, não vai acontecer nada, o pesadelo, ainda que próximo,
Passa sem sequer nos notar.


19. Tem dias em que apenas leio longos poemas

Tem dias em que apenas leio longos poemas

Deixa-te de ilusões, Mário! Bom edredom, bom fogo
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...

Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!.

O menino dorme. Tudo o mais acabou.

Mário de Sá-Carneiro, Caranguejola


20. Na sala de leituras do Inferno

Na sala de leituras do Inferno       No clube
de aficionados por ficção científica
Nos pátios frios       Nos asilos
Nos caminhos de gelo       Quando tudo já parece mais claro
E cada instante é melhor e menos importante
Com um cigarro na boca e com medo       Às vezes
os olhos esperançosos       E 26 anos       Um servo.























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