sexta-feira, 13 de abril de 2012

ATO III - Artigo - Beatriz Sarlo

eric blog
ANO I
N.3
São Paulo
2012


Resumindo: toda comunicação de conteúdos espirituais é língua, linguagem, sendo a comunicação pela palavra apenas um caso particular: o da comunicação humana e do que a fundamenta ou do que se funda sobre ela (a jurisprudência, a poesia). Mas  a existência da linguagem estende-se não apenas a todos os domínios de manifestação do espírito humano, ao qual, num sentido ou em outro, a língua sempre pertence, mas a absolutamente tudo. Não há evento ou coisa, tanto na natureza animada, quanto na inanimada, que não tenha, de alguma maneira, participação na linguagem, pois é essencial a tudo comunicar seu conteúdo espiritual.
Walter Benjamin, “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem”


ATO III

Se Borges não tivesse existido
Beatriz Sarlo

Título original: Si no hubiera existido Borges

La Nación
Viernes, 10 de junio de 2011.
(Publicado en la edición impresa)

http://www.lanacion.com.ar/1379981-si-no-hubiera-existido-borges

Tradução de Eric Dantas. São Paulo, 2011.


Os lugares-comuns algumas vezes acertam. Por exemplo: é impossível pensar a literatura argentina sem Borges. Peça-chave do século XX, a partir dele se cruzam ou se dispersam todas as linhas. Isto vale até o começo de 1980. Desde então aconteceram coisas diferentes que dariam lugar a outra nota, cujo título poderia ser “A literatura argentina depois de Borges”, quando começou a funcionar de modo mais “normal”, menos vulcânico; segue sendo o Grande Escritor com quem, no entanto, já nem todos ajustam contas e se traçam diagonais que Borges não pisou. A culminação absoluta e o apaziguamento.

Como teria sido a literatura até os anos oitenta sem Borges? É difícil imaginar Bioy Casares sem o prefácio de A invenção de Morel, que Borges escreveu. Mas podemos imaginar outros que, provavelmente, teriam desenhado uma cartografia diferente, despojada do “centro Borges”. A pergunta permite pensar “vagamente”, não como se algo faltasse senão tentando imaginar sua radical inexistência. Se pensarmos nele como um simples ausente o exercício nem valeria a pena.

Por outro lado, se trata de esquecer que existiu e reordenar o que fica. Os livros inaugurais do “novo” teriam sido Vinte poemas para ser lidos no trem (1922), Imitações (1925) e Espantalho (1932), de Oliverio Girondo, e não a série Fervor de Buenos Aires (1923), Lua defronte (1925) e Caderno San Martín (1929). Provavelmente ninguém teria relido Evaristo Carriego, como fez Borges, e a poesia argentina teria em seu centro operações mais “vanguardistas”, como as de Girondo. E em lugar das margens portenhas, o bairro e as ruas retas até o horizonte, estaria a paisagem fluvial e fluida de Juan L. Ortiz. Na ausência de Borges, provavelmente essas seriam as duas grandes linhas poéticas da primeira metade do século XX.

Martínez Estrada foi o grande escritor ideólogo; mas sem Borges, não haveria obstáculos para pensá-lo, unicamente, como o grande ensaísta do século. Por outro lado, seus relatos desembocariam no centro do sistema. O prodigioso “Marta Riquelme”, por exemplo, teria inventado um espaço original, fantástico, labiríntico, arbitrário e terrível. “A inundação” teria sido o tributo que a literatura argentina, na ausência de Borges, rendeu a Kafka, o escritor que Borges admirou de modo incondicional. Mas algo estaria faltando. Martínez Estrada não é tão citado como Borges, e uma literatura é, entre outras coisas, um sistema de citações e reconhecimentos, diálogos, empréstimos e deformações.

Sem Borges, a forma mais simples de ordenar a literatura da primeira metade do século cairia em pedaços. A solícita oposição na qual Borges foi o que Arlt não pôde ser e vice-versa dá uma ordem aos livros até 1950. Mas sem Borges, a originalidade de Arlt se ligaria diretamente com a de Puig: dois escritores que escrevem “na margem” da literatura, ainda que seja um mito sustentar que não sabiam literatura. Arlt escreve a partir do jornalismo, do folhetim e do romance russo (Borges detestava o romance russo, mas o agradavam, como uma debilidade, apenas os folhetins gauchescos); Puig escreve a partir do romance sentimental e do imaginário do cinema (Borges detestava o romance sentimental, e se interessava pelo cinema, mas não à maneira de Puig: mantinha suas distâncias, se desviava).

Provavelmente Bioy não teria sido quem realmente foi sem Borges e se reconheceria em Silvina Ocampo uma marca de originalidade muito forte. Ela não foi borgiana; sua escrita tem uma obscuridade, uma imprecisão calculada, uma perversidade na junção de palavras que não são borgianas. Há em Silvina Ocampo uma espécie de rebeldia à racionalidade formal, à trama bem composta e à nitidez do complexo (a grande marca de Borges) que a coloca sempre como uma outsider. Sem Borges, Silvina Ocampo teria sido uma alternativa de primeiro plano, não uma escritora estranha que, paradoxalmente, esteve próxima de Borges durante muito tempo.

Alguns escritores não tocados pela ausência de Borges: Leopoldo Marechal, por exemplo. Pouco teria mudado. Adán Buenosayres está escrito em absoluta contemporaneidade com os grandes relatos de Borges, mas como se pertencesse a um sistema musical diferente, com outros tons e escalas. O caminho de Marechal teria sido provavelmente o mesmo. Borges e Marechal não dialogavam. Cortázar, por outro lado, lia Borges e declarou que quis escrever na língua que Borges usava. Como inventor de ficções buscou o que Borges rechaçava: o shock do surrealismo, o disparate da patafísica. Não estou muito segura de que Borges foi indispensável do modo em que foi para Walsh ou para Piglia. O fantástico de Cortázar não é uma resposta a Borges; é algo diferente.

Sem Borges o que teria sido de Saer? Seu primeiro livro Na zona, de 1960, é tão borgiano como uma homenagem ou uma ironia. Depois, Saer (um dos melhores leitores de Borges) se dedica ao que é seu, como se Na zona tivesse sido o passo necessário para mostrar que qualquer um imita Borges, em um momento de cópia necessária e de competência temerária que, uma vez atravessado, abre um território original. Copiar para exorcizar; copiar para ausentar.

Sem Borges, a literatura argentina não teria um capítulo “antiBorges”, onde se discutiram as implicações entre figuração literária e ideologia política. AntiBorges é o título da compilação, feita por Martín Lafforgue, desses debates. Ainda que pareça uma discussão velha, não é tanto e, às vezes, volta no momento menos pensado (precisamente porque é o momento em que se pensa menos). Sem Borges, o escritor de literatura fantástica mais citado teria sido Cortázar, que apresenta poucos problemas ideológicos depois de sua conversão à Revolução Cubana. A oposição fantástico-realista teria como objeto seus relatos.

Sem Borges, a teoria literária não teria encontrado uma obra que permitisse alcançar uma autoconsciência argentina: pensar problemas teóricos com textos escritos aqui, como se esses textos antecipassem aqueles problemas, adivinhasse-os e os deixasse em aberto. E ainda que a língua de Arlt e de Saer venham de geografias originais, sem Borges não se teria escrito nesse castelhano rio-platense límpido, tão criollo como cosmopolita, que (ao contrário dos enigmas rebuscados, porém banais) apenas mostra sua dificuldade magistral, seu desafio à inteligência, uma vez que o leitor começa a se aproximar e a compreender.






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