domingo, 13 de maio de 2012

ATO IV - Crônica - Wendy Guerra


eric blog
ANO I
N.4
São Paulo
2012


Não dirijo nada. Nem as minhas próprias palavras. Mas não é triste: é humildade alegre. Eu, que vivo de lado, sou à esquerda de quem entra. E estremece em mim o mundo...
Na hora de pintar ou escrever sou anônima. Meu profundo anonimato que nunca ninguém tocou.
Clarice Lispector, “Água viva”

ATO IV

A menina vestida de preto
Wendy Guerra

Título original: La niña vestida de negro

El Mundo, 10 de diciembre de 2009.
http://www.elmundo.es/elmundo/blogs/habaname

Tradução de Eric Dantas. São Paulo, 2011.


Este mês faço 39 anos. Estarei em Havana, em minha casa, como sempre, escrevendo, lendo, ouvindo jazz cubano e vendo passar um ou outro barco perdido no horizonte.

Um dia antes, inventarei minha própria festa, cozinharei para os amigos, e organizarei o modo deles acertarem uns com os outros possíveis caminhos que os conduzam até meu bairro.

Minha mãe achava que comemorar o aniversário era algo de muito mau gosto; justificava nossa solidão sem recursos com teorias extravagantes.

Ela odiava “a criançada dentro de casa”, que na realidade era um apartamento pequeno cheio de livros. Na foto que tirei no dia do meu primeiro aniversário estou com um vestido preto que ela fez para mim. Uma menina vestida de preto em uma cidade provinciana podia ser um tremendo espetáculo. Mas ninguém nos viu cear juntas, solitárias, vestidas de preto, ouvindo “Rádio Cidade do Mar”. A foto foi tirada de graça e de última hora por um amigo jornalista que admirava o mundo de mamãe.

As suas contemporâneas comemoravam assim os aniversários de seus filhos: foto ao lado do bolo, empurra-empurra para pegar o bolo, o rabo de burro, o jogo de cadeirinhas, gincana ou sorteio de presentes e uma “caixinha” de papel-cartão cheia de salada fria, croquetes e bolinhos. Sob a chuva voltavam para casa com um jornal na cabeça e uma porção de doces para seus familiares. Tudo isso acontecia nas outras casas, mas também podia acontecer na escola; pertenço à geração de pioneiros dos “aniversários coletivos”, círculos infantis, semi-internos ou bolsistas.

Os meninos “sortudos” comemoravam com palhaços ou mágicos, que me deixavam em pânico. Conhecia todos eles do teatro de marionetes que meu pai dirigia, sabia seus hábitos de cor, as perguntas óbvias, os cálculos artificiais, e para terminar sempre faziam uma piada de mau gosto sobre seu colega, meu pai, que um dia desapareceu com um único truque de mágica.

Estou retratada em preto-e-branco como testemunha de aniversários alheios. Apareço com vestidos emprestados, ou com uniforme vermelho-grená amassado às cinco horas da tarde, poso com cara de “tenho-que-ir”, fingindo ser uma menina entre os meninos.

Agora acontece o contrário, faço a personagem adulta, não tenho crescido muito, mas ainda vivo em um lugar cheio de problemas que me superam, que saem pelas janelas; há peixes coloridos, peixes mais vivos que mortos, um terrível pôr-do-sol, amanheceres sublimes e amigos ou amores fiéis que sobreviveram ao exílio.

Chegou dezembro; exposições de pintura, estreias de filmes que são projetados no Festival que entra na cidade como Rumos. Cinemas fechados, cinemas que resistem, cinemas renovados, como todos nós. Por que me inquieta tanto a cidade onde vivo? Porque se parece comigo, nos parecemos com a nossa cidade, também somos responsáveis por ela.

Estou bem de saúde, mas também preocupada. Tenho o rosto franzido; os olhos ainda brilham enquanto mordo a boca num gesto de minha mãe. Daqui para frente terei de mudar totalmente meu estilo, usarei este ano, véspera dos quarenta, para domar a moça que deve saber como chegar com sutileza à maturidade.

O ritual de aniversário se aproxima. Tentarei ver o melhor de tudo que me cerca, o Monte Barreto, as árvores que me protegem, o litoral, os concertos de músicos que admiro, a visita dos amigos, suas piadas e longas confissões. Vou escolher um ângulo menos ocre para esta fotografia de dezembro. Todas as saudações e despedidas, as menos dramáticas. Emoldurarei quadros embrulhados, responderei cartas esquecidas e serei a que confecciona a “caixinha” dos aperitivos da festa. Representarei o mesmíssimo aniversário coletivo, talvez o verdadeiro motivo que me faz seguir na cidade de sempre.

Ainda que desta vez tenha um detalhe importante; dos que ficamos, gente que tem sofrido perdas e tem sobrevivido, vão estar na foto apenas quem eu escolher e não os escolhidos pelo diretor da escola.

Nem apaixonados, nem estranhos, nem indicados, “nem convidados de ocasião”. Apenas amigos íntimos acima dos 39 anos. Neste aniversário darei uma grande lição a mim mesma e, todos juntos, daremos adeus à menina que há muito tempo devia ter deixado para trás.




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