eric blog
ANO I
N.4
São Paulo
2012
Não
dirijo nada. Nem as minhas próprias palavras. Mas não é triste: é humildade
alegre. Eu, que vivo de lado, sou à esquerda de quem entra. E estremece em mim
o mundo...
Na
hora de pintar ou escrever sou anônima. Meu profundo anonimato que nunca ninguém
tocou.
Clarice
Lispector, “Água viva”
ATO
IV
A
menina vestida de preto
Wendy
Guerra
Título
original: La niña vestida de negro
El
Mundo, 10 de diciembre de 2009.
http://www.elmundo.es/elmundo/blogs/habaname
Tradução
de Eric Dantas. São Paulo, 2011.
Este
mês faço 39 anos. Estarei em Havana, em minha casa, como sempre, escrevendo,
lendo, ouvindo jazz cubano e vendo passar um ou outro barco perdido no
horizonte.
Um
dia antes, inventarei minha própria festa, cozinharei para os amigos, e
organizarei o modo deles acertarem uns com os outros possíveis caminhos que os
conduzam até meu bairro.
Minha
mãe achava que comemorar o aniversário era algo de muito mau gosto; justificava
nossa solidão sem recursos com teorias extravagantes.
Ela
odiava “a criançada dentro de casa”, que na realidade era um apartamento
pequeno cheio de livros. Na foto que tirei no dia do meu primeiro aniversário
estou com um vestido preto que ela fez para mim. Uma menina vestida de preto em
uma cidade provinciana podia ser um tremendo espetáculo. Mas ninguém nos viu
cear juntas, solitárias, vestidas de preto, ouvindo “Rádio Cidade do Mar”. A
foto foi tirada de graça e de última hora por um amigo jornalista que admirava
o mundo de mamãe.
As
suas contemporâneas comemoravam assim os aniversários de seus filhos: foto ao
lado do bolo, empurra-empurra para pegar o bolo, o rabo de burro, o jogo de
cadeirinhas, gincana ou sorteio de presentes e uma “caixinha” de papel-cartão
cheia de salada fria, croquetes e bolinhos. Sob a chuva voltavam para casa com
um jornal na cabeça e uma porção de doces para seus familiares. Tudo isso
acontecia nas outras casas, mas também podia acontecer na escola; pertenço à
geração de pioneiros dos “aniversários coletivos”, círculos infantis,
semi-internos ou bolsistas.
Os
meninos “sortudos” comemoravam com palhaços ou mágicos, que me deixavam em pânico.
Conhecia todos eles do teatro de marionetes que meu pai dirigia, sabia seus hábitos
de cor, as perguntas óbvias, os cálculos artificiais, e para terminar sempre
faziam uma piada de mau gosto sobre seu colega, meu pai, que um dia desapareceu
com um único truque de mágica.
Estou
retratada em preto-e-branco como testemunha de aniversários alheios. Apareço
com vestidos emprestados, ou com uniforme vermelho-grená amassado às cinco
horas da tarde, poso com cara de “tenho-que-ir”, fingindo ser uma menina entre
os meninos.
Agora
acontece o contrário, faço a personagem adulta, não tenho crescido muito, mas
ainda vivo em um lugar cheio de problemas que me superam, que saem pelas
janelas; há peixes coloridos, peixes mais vivos que mortos, um terrível pôr-do-sol,
amanheceres sublimes e amigos ou amores fiéis que sobreviveram ao exílio.
Chegou
dezembro; exposições de pintura, estreias de filmes que são projetados no
Festival que entra na cidade como Rumos. Cinemas fechados, cinemas que
resistem, cinemas renovados, como todos nós. Por que me inquieta tanto a cidade
onde vivo? Porque se parece comigo, nos parecemos com a nossa cidade, também
somos responsáveis por ela.
Estou
bem de saúde, mas também preocupada. Tenho o rosto franzido; os olhos ainda brilham
enquanto mordo a boca num gesto de minha mãe. Daqui para frente terei de mudar
totalmente meu estilo, usarei este ano, véspera dos quarenta, para domar a moça
que deve saber como chegar com sutileza à maturidade.
O
ritual de aniversário se aproxima. Tentarei ver o melhor de tudo que me cerca,
o Monte Barreto, as árvores que me protegem, o litoral, os concertos de músicos
que admiro, a visita dos amigos, suas piadas e longas confissões. Vou escolher
um ângulo menos ocre para esta fotografia de dezembro. Todas as saudações e
despedidas, as menos dramáticas. Emoldurarei quadros embrulhados, responderei
cartas esquecidas e serei a que confecciona a “caixinha” dos aperitivos da
festa. Representarei o mesmíssimo aniversário coletivo, talvez o verdadeiro
motivo que me faz seguir na cidade de sempre.
Ainda
que desta vez tenha um detalhe importante; dos que ficamos, gente que tem
sofrido perdas e tem sobrevivido, vão estar na foto apenas quem eu escolher e não
os escolhidos pelo diretor da escola.
Nem
apaixonados, nem estranhos, nem indicados, “nem convidados de ocasião”. Apenas
amigos íntimos acima dos 39 anos. Neste aniversário darei uma grande lição a
mim mesma e, todos juntos, daremos adeus à menina que há muito tempo devia ter
deixado para trás.
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