eric blog
ANO I
N.5
São Paulo
2012
Se
não sangra, a minha escrita não existe. Se não rasga o corpo, tampouco existe.
Tatiana
Salem Levy, “A chave de casa”
ATO
V
Poemas
escolhidos de Jessica Freudenthal
Poemas
extraídos de Hardware
Plural
Editores: La Paz, 2009.
2°
edição revista e ampliada.
Tradução
de Eric Dantas. São Paulo, 2011.
1.
Subtração poética
Para
Raúl Zurita
escrevo
com medo
desde
o medo
de
pôr a palavra
a
palavra incorreta
poetiza!
poetisa!
poetita
de merda
Medo
morro
morro
de
medo
de
não saber
de
onde venho
da
Bolívia
dizem
que venho
bolivianita
que
bonita palavrita
vazia
escrevo
com medo
vazia
escrevo
com tédio
não
sou de parte alguma
Chukiago
Marka não existe
somente
a pedra
o
silêncio
as
caveiras
ecoando
– ñatita ñatita
–
recitando
vem
a morte
ecoando
Escrevo
com medo
a
palavra se corta
a
palavra se
Corta
a
palavra
se
corta
a
palavra
se
corta
Chukiago
Marka não existe
é apenas um nome
escrito
com medo
escrevo
como posso
não
penso
nos
criticantes nem nos amantes
tampouco
nas consoantes
somente
nas assonantes
Medo
Chukiago
Marka não existe
não
há alfabeto
para
dizer
qual
será a letra milenar para escrever?
Erro
poetita
de merda.
2.
Xis
Este
poema se desfaz
se
despedaça
nos vincos do silêncio
lenta
mente
tentando sujeitar-se ao verbo
a um adjetivo que não existe.
Este
poema se rompe:
Acaba de parir outro poema.
se
esvazia da forma
e
no fundo está o pronome.
Meu coração morre
de rir
quando me vê chorar.
Este
não é um poema.
Isto
não é um poema.
É
um fragmento incompleto do abismo,
um
simulacro de
fuga
pura
ginástica cerebral,
um
pálido pedaço de papel,
Todos
os pontos suspensos...
3. Os mortos
“Os
mortos estão nesta terra
cujo
mistério evapora e os abriga”.
Paul
Valéry
Silenciados,
esfarrapados,
ausentes
e com cicatrizes,
debaixo
das sombras se escondem como aranhas,
irrompem
escuridões espessas e rasgadas.
Se
ferram entre arames,
entre
bálsamos traiçoeiros
a
terra que se contrai.
Nós
não podemos nada
Dizer
nada
Tocar nada
Ouvir nada Morrer nada
Viver
nada
Apenas
os silenciados e esfarrapados,
os
que se quebram e agonizam
podem
arder como velas.
Nós
apenas somos feitos de abismos:
O
tempo nos despreza.
4.
Poeira
Atravessar
a memória,
as
palavras suspensas
– de repente –
nas
esquinas.
Pensar,
ficar
quieto
e
avistar o silêncio
pelo
olho do mundo.
Atravessar
o esquecimento
trazendo
nas costas a memória,
os
remendos do tempo
e
o alento inacabado
da
luz.
Dar
um passo
para
o abismo.
Cair
– irremediavelmente
–
dentro
de
si mesmo.
5.
Mitos
O
mito
prato
fundo
circular
A
mesa da origem
ordenada
posta
na
cabeceira o homem
a
mulher à sua esquerda
e
o sal
próximo
do fruto
testemunhando
o incômodo
do
porta-guardanapos e seus entalhes
Servidos
os
olhos de Tirésias,
o
pescoço de Jocasta,
a
boca de Antígona,
em
salmoura
Os
pés de Édipo
vem
O
azeite
impregnado
na linguagem
sobre
a medida voraz do dia
que
vê o início
de
uma trégua
entre
os pratos quebrados.
Posfácio
A
ginástica cerebral de Jessica Freudenthal
Juan
Carlos Ramiro Quiroga
Hardware
(La Paz, 2004), de Jessica Freudenthal Ovando é a evidência indiscutível do
fracasso da decisão do jurado na eleição dos ganhadores das cinco versões do Prêmio
Nacional de Poesia “Yolanda Bedregal”, com a exceção de Antonio Terán Cabero e
Jorge Campero.
Em
cada anúncio dos ganhadores desse prêmio nacional as menções são mais
alentadoras e sugestivas do que os próprios premiados. Isso ficou claro a
partir do momento em que a Plural Editores, a engrenagem principal de “Yolanda
Bedregal”, começou a divulgar os resultados em sua linha de difusão e promoção.
Efetivamente,
Hardware é um livro de poesia excepcional pela beleza lacerante de suas
ironias e a despojada polifonia de leituras (Tristan Tzara, Sylvia Plath, Roque
Dalton, Paul Valéry, Humberto Quino Márquez, Pope, Charly García, Agustín
Bartra, Yamilé Paz Paredes) que vem a perfilar mais que apoiar a consciência
fatalista da autora.
Tal
como o crítico e semiólogo francês Roland Barthes, Jessica Freudenthal realiza
uma leitura personalíssima das mitologias contemporâneas (o eterno feminino, o
trabalho intelectual, o doméstico ou familiar), até deslocá-las de seus
significados tradicionais por outros que são talvez mais reais ou atuais. A
partir desse “abismo” lança seus dardos.
Não
há em Hardware nem um pouco da complacência, da contemplação e da inocência
feminina (características da mulher submissa e obediente), mas ao contrário: a
descortesia, a intimidação e o sarcasmo de Lilith, a primeira mulher criada por
Deus.
A
partir desse ponto de vista, o ambiente familiar e doméstico não é o que parece
ser, senão o que está a ponto de revelar o fio da linguagem de Jessica
Freudenthal. Sua palavra é uma espada que fere de ironia os valores mais
profundos da cotidianidade.
Indo
mais além, os poemas de Hardware rompem ou quebram a face monótona da
realidade comum, quer dizer, se estilhaçam contra as unhas e as boquinhas
pintadas da hipocrisia familiar, doméstica e urbana. Nunca mais – argumenta
Freudenthal – ao sonho americano made in Walt Disney.
Ao
ser uma crítica do ambiente familiar e doméstico, Hardware é também – não
pode deixar de ser – uma crítica da linguagem que o assinala, porque
a ironia funciona em ambos os lados tanto na realidade como na imaginação,
porque transforma ambos significados.
Por
isso o livro de Freudenthal é, acertadamente dito pela autora, “um simulacro
de/pura ginástica cerebral”. Nada mais pontual que esta observação ressaltada
no início da obra poética a fim de estabelecer o jogo.
Não
obstante, o sarcasmo utilizado em Hardware produz, no ápice de contato
com o leitor, um curto-circuito. O poema deixa de ser o poema que vem orientar
a existência humana para converte-se em uma simples vantagem: um “poema curita”
como diz Freudenthal.
A
poesia de Freudenthal vai na mesma direção da poesia de Humberto Quino Márquez:
irreverente com as coisas familiares do mundo e também irreverente consigo
mesma com a mesma paixão e agudeza da argentina Laura Yasán ou a alegria da
chilena Malú Urriola.
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